Ricardo Nunes e bolsonaristas mentem sobre projeto de Sâmia que anistia usuários de maconha

Peças de campanha eleitoral dizem que PSOL quer libertar da prisão mais de 40 mil traficantes de drogas

27 set 2024, 15:27 Tempo de leitura: 5 minutos, 21 segundos
Ricardo Nunes e bolsonaristas mentem sobre projeto de Sâmia que anistia usuários de maconha

Não é verdade que um Projeto de Lei (PL) apresentado pelo PSOL prevê a libertação de 40 mil traficantes, como alega o atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), e alguns de seus apoiadores em meios digitais e propagandas eleitorais de TV. A proposta encabeçada pela deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) tem como base a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que estabeleceu, para fins penais da Lei de Drogas, um limite quantitativo de porte ou posse maconha considerado para consumo próprio: 40 gramas ou seis pés de planta.

Entre os conteúdos divulgados, havia um vídeo em que o narrador reproduz essa mentira em tom dramático, finalizando: “se você é traficante de drogas, precisa votar no Boulos”. Colega de Sâmia na bancada do PSOL na Câmara, Guilherme Boulos é o principal adversário de Nunes na disputa pela prefeitura da capital paulista. A insinuação foi classificada como injúria pela Justiça Eleitoral, que determinou a exclusão da peça e concedeu direito de resposta ao deputado.

Em outro material, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) – ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro – engana ao dizer que o projeto prevê o “saidão dos traficantes”, resultando na soltura de 42 mil criminosos condenados. Publicações com esse conteúdo falacioso acumularam milhares de visualizações no Threads, Facebook, TikTok e Instagram, sem contar os compartilhamentos via WhatsApp, mais difíceis de aferir.

Apesar da fake news criada pelos bolsonaristas fazer referência direta a Boulos, ele sequer é coautor da proposta. Além de Sâmia Bomfim, subscreveram outros sete deputados: Fernanda Melchionna (RS), Glauber Braga (RJ), Ivan Valente (SP), Chico Alencar (RJ), Tarcísio Motta (RJ) e Celia Xakriabá (MG), todos do PSOL; e Túlio Gadêlha (REDE-PE).

Opinião de especialistas

Em conversa com o Metrópoles, o professor titular de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Gustavo Badaró, defendeu a proposta de Sâmia. “O Supremo disse que a conduta de uso de drogas para consumo próprio não caracteriza crime, mas sim uma infração administrativa. Ele não disse que é liberado, mas que não é mais crime e é esse aspecto que motivou a elaboração desse projeto. A ideia do PL, que me parece teoricamente correta, é que, se isso não é mais crime, então nós devemos conceder uma anistia para todas as pessoas que foram processadas ou condenadas como usuário de drogas”, afirmou.

“O projeto diz que tem que ser as pessoas que estão na situação do artigo 28 da Lei de Drogas, sobre o usuário. Traficante é o artigo 33 […] Ele não prevê a anistia e, consequentemente, a colocação em liberdade de nenhum traficante. Ele prevê somente a anistia de usuários de drogas que já estejam processados por isso”, completou Badaró.

A professora de Direito Penal da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Luisa Ferreira, destacou ao portal que a descrição feita pelo PL reforça o entendimento sobre essa diferença entre usuário e traficante. Segundo ela, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, o STF fez a mesma delimitação quantitativa, mas deixou uma brecha ao definir que “caberá ao delegado de polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal”.

“Ou seja, em princípio, o delegado tem que entender que ela é uma usuária e não uma traficante, mas casos como esses ainda vão poder continuar sendo enquadrados como tráfico mesmo com quantidade inferior a 40 gramas. Na decisão do recurso, o STF disse que essa presunção pode ser relativizada se tiver elementos indicativos do instituto de venda, então, essa pessoa pode ser considerada traficante. É como se fosse uma brecha”, pontuou Ferreira.

O mesmo é reforçado pela organização jornalística Aos Fatos, que mantém uma plataforma dedicado à checagem de notícias. Na matéria “É falso que projeto do PSOL cria ‘saidão’ para libertar 42 mil traficantes”, o texto explica que a polícia está autorizada a apreender a cannabis e conduzir a pessoa à delegacia mesmo por quantidades inferiores ao limite definido pela Corte, principalmente quando houver outros elementos que indiquem possível tráfico de drogas, como embalagem da droga, variedade de substâncias apreendidas, balanças e registros de operações comerciais.

De onde tiraram 40 mil?

O Aos Fatos também trouxe dados dos Atlas da Violência 2024, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O levantamento avalia que cerca de 42 mil pessoas não estariam presas se até 25 gramas de maconha ou até 10 gramas de cocaína fossem consideradas quantidades para uso pessoal, e não tráfico. O porte de cocaína, no entanto, não foi julgado pelo STF e continua sendo ilegal. Portanto, não há uma estimativa exata de quantas pessoas seriam colocadas em liberdade, uma vez que a pesquisa também considera uma droga cujo porte continua proibido e criminalizado.

O que diz o PL 2622/2024

Eis a íntegra da ementa do projeto: “Dispõe sobre a concessão de anistia aos acusados e condenados pelo crime definido no artigo 28, da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, por adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40g (quarenta gramas) de Cannabis, ou 6 (seis) plantas-fêmeas, para uso próprio”.

Na justificativa, a deputadas Sâmia e os coautores reforçam que, “uma vez que restou definido pelo STF que não comete infração penal quem adquirir, guardar, transportar ou trouxer consigo para consumo pessoal a substância cannabis, é prudente que tal entendimento seja supedâneo para anistiar quem tenha incorrido no crime previsto no art. 28, da Lei nº 11.343/2006, tendo em vista que a tese fixada, ao ser consagrada em Lei, tem o condão de ter seus efeitos retroagidos no tempo, em favor de quem foi punido por conduta que não mais se define como crime”.

A tramitação da proposta segue em regime ordinário, devendo passar pela apreciação das comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) antes de ser levada ao plenário da Câmara. A deputada do PSOL requereu ainda que seja discutida na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial.