MP é acionado contra Prefeitura de SP, que teria acessado prontuários sigilosos de pacientes de aborto legal no Hospital Cachoeirinha
Pedido de investigação foi protocolado pela deputada federal Sâmia Bomfim, assinado também pela vereadora Luana Alves e pela estadual Monica Seixas, todas do PSOL
31 jan 2024, 18:50 Tempo de leitura: 8 minutos, 34 segundosTexto original publicado pela Marie Claire
O mandato da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) protocolou nesta sexta-feira (26) uma ação ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) em que pede a investigação de um possível acesso da Prefeitura de a prontuários sigilosos de pacientes que acionaram o serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, entre 2020 e 2023, como noticiou Marie Claire. O suposto pedido teria sido feito pela Secretaria Municipal de Saúde, sem requerimento judicial, por suspeitas de que abortos ilegais eram feitos na unidade.
Profissionais de saúde que trabalham no hospital afirmam que a solicitação foi feita em dezembro, mesmo mês em que a gestão Ricardo Nunes (MDB) suspendeu o serviço de aborto legal do Hospital Cachoeirinha, que era referência há 30 anos no procedimento.
A ação ao MPSP também é assinada pela deputada estadual Monica Seixas do mandato coletivo Pretas (PSOL-SP) e pela vereadora Luana Alves (PSOL-SP). Segundo o documento, o pedido de acesso a prontuários sigilosos que teria sido feito pela Secretaria Municipal de Saúde é “ilegal” por violar direitos previstos no Código Civil, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o resguardo do sigilo de fonte.
As parlamentares pedem que a Promotoria de Justiça investigue “as condições em que se deu a obtenção dos prontuários de pacientes que realizaram a interrupção da gravides pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, para o fim de apurar a responsabilidade administrativa, civil e criminal dos agentes que realizaram tal aparente ilícito”.
“O papel da Prefeitura deveria ser de garantir o funcionamento de um serviço que dá acesso ao aborto, permitido por lei desde 1940, e garantir o bom funcionamento do Hospital Nova Cachoeirinha. Ao contrário disso, a Prefeitura fechou o serviço, cometendo uma nova violação para as mulheres que procuram esse serviço e que foram vítimas de violência. E, agora, comete uma violência inimaginável, que é acessar dados sigilosos”, diz Sâmia Bomfim a Marie Claire.
Bomfim ainda define o suposto pedido da Prefeitura de São Paulo como “gravíssimo” e “caça às bruxas”. “É abrir mão de seu papel de garantir direitos para assumir um papel de violador de direitos. [É um papel] de quem exerce violência, e não de quem organiza serviços para vítimas de violência”, conclui.
Em 11 de janeiro, o Ministério Público Federal (MPF) já havia emitido um ofício em que pedia explicações à Prefeitura de São Paulo sobre os motivos que levaram a Secretaria a suspender o serviço de aborto legal do Hospital Cachoeirinha. Afirmou ainda que a indisponibilidade do procedimento “causa transtornos a mulheres que se enquadram nos casos legalmente autorizados para aborto”.
Desde dezembro, a pasta afirma que o fechamento do serviço se deu para que o hospital possa receber “mutirões de cirurgia, como de endometriose e histerectomia, e outros procedimentos envolvendo a saúde da mulher a fim de atender à demanda necessária”.
A unidade era uma das quatro que realizava abortos após a 22ª semana de gestação. No Brasil, o direito ao aborto é concedido a pessoas que passam por gestações decorrente de estupro, de feto anencéfalo ou que causa risco de vida à pessoa que gesta, sem limite de tempo gestacional.
Segundo a Prefeitura, outros quatro hospitais e todas as unidades estaduais realizam o aborto legal, sem limite de tempo (veja os endereços no fim da reportagem).
Prefeitura de SP teria acessado prontuários sigilosos de quem realizou aborto legal entre 2020 e 2023 no Cachoeirinha
De acordo com profissionais de saúde que trabalham no hospital e aceitaram falar com Marie Claire sob anonimato, a Secretaria Municipal de Saúde pediu para receber todos os prontuários de meninas, mulheres e pessoas que gestam que acessaram o serviço de aborto legal nos últimos quatro anos.
Nos prontuários, constam informações como nome completo e endereço de residência das pacientes, ano de atendimento e nome do profissional de saúde que realizou o procedimento.
Segundo um dos profissionais, foram mais de 100 abortos realizados só em 2023. Outra residente afirma que o pedido foi comunicado pela direção do Hospital Cachoeirinha, e que “foi algo imposto que o hospital teve que acatar”. Ela diz que parte dos prontuários já teriam sido entregues à Secretaria.
Segundo a advogada especializada em direito médico e de saúde Renata Farah, consultada pela reportagem, o acesso de prontuários sigilosos sem requerimento judicial viola a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o direito constitucional à intimidade e o Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM).
O Código de Ética Médica só permite acesso a informações sigilosas de prontuários caso exista autorização por escrito do paciente, requerimento judicial ou se o documento for uma maneira de defender um profissional de saúde.
“Independente do motivo que justifique a solicitação de obtenção de dados pessoais e de saúde de forma ampla (seja a elaboração de políticas públicas sobre o tema ou investigação de irregularidades nos atendimentos), nada justifica a violação à privacidade e infração ao sigilo entre o médico e o paciente”, a advogada afirmou à reportagem.
Secretaria Municipal de Saúde diz que suspeita de realização de abortos ilegais
Em 18 de janeiro, o secretário da pasta, Luiz Carlos Zamarco, já havia afirmado a CNN Brasil que suspeitava que abortos ilegais estivessem acontecendo no Vila Nova Cachoeirinha, devido ao grande número de pacientes residentes em outros estados e municípios.
Procurada por Marie Claire, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo afirmou em nota que iniciou uma apuração interna para averiguar “eventuais problemas em serviços oferecidos” e ainda “o atendimento a pacientes de outros estados que chegavam à unidade hospitalar para realização do procedimento”. Contudo, não se pronunciou quanto ao pedido de acesso aos prontuários médicos das pacientes.
A residente que falou com a reportagem afirmou que era comum que mulheres, meninas e demais pessoas que gestam de outros estados procurassem o serviço de aborto legal do Hospital Cachoeirinha. Isso porque o acesso ao aborto legal é desigual no país: o último levantamento do Mapa do Aborto Legal (feito em 28 de setembro de 2022) indica que existem 73 centros de atendimento que realizam o procedimento. Destes, somente 33 são listados pelo Ministério da Saúde.
“O que foi encontrado [nos prontuários] é apenas a realidade vivenciada por inúmeras meninas, mulheres e pessoas que gestam: que é a necessidade de deslocamento entre cidades, estados e regiões do Brasil para que essas crianças e mulheres – em sua grande maioria, vítimas de estupro – pudessem acessar um direito que lhes é garantido por lei”, afirmou Rebeca Mendes, diretora-executiva do Projeto Vivas, ONG que conecta mulheres a serviços de aborto legal no Brasil e no exterior e que tem articulação junto aos serviços de saúde referência no país.
Essa é a situação enfrentada atualmente por mulheres paulistanas que têm direito ao aborto legal, desde a suspensão do serviço. Em dezembro, Marie Claire contou histórias de mulheres vítimas de estupro que precisaram se deslocar a outros estados para poder realizar o procedimento. Uma delas era menor de idade e teve de passar dois dias em um ônibus para conseguir interromper uma gestação de 31 semanas.
Além disso, a Lei nº 8080/90, que cria o Sistema Único de Saúde (SUS), prevê cobertura nacional para todos os brasileiros, em qualquer estado.
O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo afirmou a Marie Claire que “sempre verificou atuação escorreita e dentro da legalidade”. Afirmou ainda que “não há ilegalidade em prestar serviço de saúde de interrupção legal de gestação a mulheres e meninas de outras cidades”.
“Não há exigência legal de comprovante de residência, o que configuraria uma barreira que violaria o acesso à saúde de meninas e mulheres. Deixar de atender mulheres e meninas vítimas de violência sexual que têm o direito de interromper a gestação, obrigando-as a continuar com a gravidez forçada decorrente de estupro, pode configurar infração ética médica e, em alguns casos, até omissão de socorro”, informou em nota a defensora Tatiana Bias Fortes, coordenadora do Nudem.
Justiça de SP ordenou reabertura do serviço de aborto legal do Hospital Cachoeirinha
No último dia 17, a 9ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) determinou que a Prefeitura de SP reative o serviço de aborto legal do Hospital Cachoeirinha. Outra determinação divulgada no último dia 23 reforçou a reabertura do serviço.
A Justiça de São Paulo ainda determina que a prefeitura realize “busca ativa para que todas as pacientes que tiveram o procedimento cancelado sejam atendidas com brevidade, abstendo-se o hospital público, ainda, de negar o agendamento do procedimento para novas pacientes”.
Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde disse que foi notificada pela Procuradoria-Geral do Município (PGM) sobre a decisão e que “está à disposição da Justiça para prestar todos os esclarecimentos necessários”. No entanto, não se pronunciou sobre se acatará a decisão e quais providências serão tomadas.
Onde acessar o serviço de aborto legal na cidade de São Paulo
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, o serviço de aborto legal na cidade de São Paulo está disponível em quatro unidades
Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni
Rua Lucas de Leyde, 257 – Rio Pequeno
Telefone: (11) 3394-9330
Hospital Municipal Tide Setúbal
Rua Dr. José Guilherme Eiras, 123 – São Miguel
Telefone: (11) 3394-8770
Hospital Municipal Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha
Estrada de Itapecerica, 1661 – Campo Limpo
Telefones: 3394-7504 / 7503 (SERAVIVI) ou 3394-7647 (Ambulatório do PROAVIVIS)
Hospital Municipal Dr. Carmino Caricchio
Avenida Celso Garcia, 4.815 – Tatuapé
Telefone: (11) 3394-6980