Sâmia promove audiência na Câmara para debater retrocessos da PEC que criminaliza usuários de drogas

Em provocação ao STF e na contramão do mundo, proposta do Senado quer proibir o porte e a posse de entorpecentes em qualquer quantidade

9 maio 2024, 22:26 Tempo de leitura: 6 minutos, 29 segundos
Sâmia promove audiência na Câmara para debater retrocessos da PEC que criminaliza usuários de drogas

Fonte: Leandro Rodrigues/ASCOM-Sâmia Bomfim

A Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara promoveu, na última quarta (8), a audiência pública “PEC 45 Não!”, requerida pela deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP). A atividade reuniu autoridades dos campos jurídico, científico, da saúde, assistência social, segurança pública e dos direitos humanos para debater os retrocessos contidos na Proposta de Emenda à Constituição que visa criminalizar os usuários de drogas. De cunho populista, a medida foi aprovada pelo Senado em 16 de abril com ampla maioria.

O texto, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), insere no artigo 5º da Constituição Federal a determinação de que é “crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins”. Em seu requerimento, Sâmia destacou que a PEC foi aprovada rapidamente, “sem um adequado processo de discussão e como uma clara tentativa de impedir a descriminalização do porte de pequenas quantidades de maconha pelo Supremo Tribunal Federal (STF)”.

Há dez anos, o STF analisa o Recurso Extraordinário (RE) 635659, que trata da procedência do artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/2006). A ação foi movida pela defesa de um sentenciado, em São Paulo, que trazia consigo apenas três gramas de maconha. No dia 6 de abril, a Corte formou placar favorável de cinco votos a três pela descriminalização do porte da erva para uso pessoal e por estabelecer um quantitativo que diferencie o usuário do traficante. A conclusão do julgamento foi adiada após um pedido de vista do ministro Dias Toffoli.

Nas palavras do especialista em direito penal econômico e diretor da Plataforma Justa, Cristiano Maronna, a PEC 45/2023 “é uma excrescência jurídica”. “O argumento de que o Supremo está invadindo uma competência privativa do Parlamento é completamente falacioso”.

“Estamos diante da inércia do Congresso, que tem plena consciência de que a aplicação prática da Lei de Drogas é uma usina de injustiças. Na ausência de provas, presume-se a traficância com base na cor da pele, no local onde a pessoa é flagrada e na classe social. Portanto, a opção do Judiciário em fixar critérios objetivos é justamente uma resposta à omissão do Poder Legislativo”, completou o advogado.

Representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), Andrea Gallassi apontou que uso de substâncias psicoativas é e continuará sendo um comportamento presente em toda a história da humanidade. Diante do cenário, o enfrentamento que cabe ao Estado é minimizar os danos provocados pelo consumo.

“Esse modelo penal-militar de criminalização foi base das legislações de quase todos os países a partir da década de 1970, lá no século passado, porque se tinha a ideia de que, ao se proibir, o uso seria coibido. No entanto, o que observamos hoje é que os efeitos dessa proibição são muito mais danosos do que o uso da substância em si”, disse a pesquisadora, que também é docente da Universidade de Brasília (UnB).


Racismo, genocídio e supremacia

Uma das maiores razões da PEC 45 ser inconstitucional é porque viola princípios basilares do nosso Estado Democrático de Direito. A afirmação é da presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Silvia Souza. Ela explicou que o artigo 5º trata das garantias e direitos fundamentais, tanto individuais como coletivos: “É cláusula pétrea, não está sujeito à alteração para redução de direitos, muito menos para para inserir qualquer outro inciso que traga reprimenda ou criminalização”.

De acordo com Silvia, a proposta também fere o Princípio da Lesividade, ou seja, uma conduta só pode ser penalizada se causar dano a terceiros ou à sociedade: “O uso problemático de qualquer substância psicoativa atinge apenas a pessoa que está consumindo, logo, essa conduta não fere um bem jurídico tutelado”.

A jurista acrescentou que a criminalização das drogas, da forma que se apresenta, tem raízes no racismo científico da “antropologia criminal”, corrente introduzida no Brasil pelo eugenista Nina Rodrigues pouco depois da escravidão ser abolida. “Em 1894, ele publicou uma tese que associava miscigenação e condições climáticas com o cometimento de crimes, propondo códigos penais diferentes à medida da cor da pele. Essa mentalidade foi introjetada na nossa legislação penal, vige até hoje e é o que sustenta essa PEC”, disse.

Na mesma linha seguiu o historiador Dudu Ribeiro, diretor e co-fundador da ONG Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas. Para ele, é imporante demarcar que o objetivo da PEC não é combater as drogas, mas aprofundar o genocídio e a supremacia “subindo alguns degraus numa escala já dramática e sangrenta de guerra”. “Toda guerra precisa de orçamento. Isso significa que um avanço institucional na guerra às drogas compromete os cofres públicos, controlados por pessoas brancas em detrimento da vida de pessoas negras”.

“A guerra também se movimenta a partir dos próprios conceitos e um deles é o de efeito colateral. Isso compreende uma jovem negra, grávida, tomar um tiro de fuzil, como aconteceu no Rio [Kathlen Romeu, morta aos 24 anos, em 2021], ou um garoto de 10 anos tomar um tiro na cabeça dentro de casa, antes de dormir, enquanto arrumava sua cama, que foi o que ocorreu com o menino Joel há 13 anos, em Salvador”. Nos dois casos citados pelo ativista, as vítimas foram atingidas por policiais militares durante operações contra supostos traficantes.


Vamos falar de crime?

Sâmia Bomfim – que, por emergência familiar, precisou participar da audiência de forma remota – acrescentou que a guerra às drogas é comprovadamente ineficiente e que a criminalização impede o acesso à saúde, substituindo “a lógica do SUS pela lógica da cadeia”. A deputada mostrou preocupação com a possibilidade de constitucionalização das internações compulsórias e da repressão aos usuários que dependem da chamada “cannabis medicinal” para a realização de tratamentos. Atualmente, mais de 200 mil pacientes são beneficiados no Brasil com a medicação.

“A gente não pode autorizar que isso seja aprovado na Câmara com esse grau de facilidade que eles querem. Sinceramente, parece provocação colocar como relator na CCJ o Ricardo Salles (PL-SP). Quer falar de crime e acusar todo mundo de traficante? Bem, o cara é réu por tráfico de madeira. E o cinismo de senadores como Jorge Seif (PL-RJ)? Mais uma vez, teve toneladas de haxixe identificadas na transportadora da sua empresa”, denunciou a parlamentar.

Na ausência de Sâmia, quem conduziu a atividade presencialmente foi seu colega de bancada, Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ). Ele considerou o tema fundamental para se pensar uma nova abordagem em relação às drogas, tendo em vista que a atual política carrega traços de criminalização da pobreza, do encarceramento em massa, da letalidade contra a juventude da favela e da rentabilidade de determinados setores em cima da barbárie. “A plena cidadania ainda tem cor, renda e CEP neste país”, enfatizou.

Compuseram a mesa, ainda, a presidente da Associação de Cannabis e Saúde (CULTIVE), Cidinha Carvalho; a diretora do Fórum de Segurança Pública, Samira Bueno; o advogado e membro da Rede Reforma, Erik Torquato; o defensor público federal, Renan Vinícius Sotto Mayor de Oliveira; e o membro da Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA), Michel Willian de Castro Marques.

Assista à íntegra da audiência pública: