Caiçaras da Jureia obtêm vitória na Justiça
Após décadas de luta, Justiça reconhece direitos territoriais de famílias caiçaras na Comunidade do Rio Verde (Estação Ecológica da Jureia/SP).
12 jul 2019, 19:17 Tempo de leitura: 4 minutos, 26 segundosA perseguição às Comunidades Caiçaras do Rio Verde, que resultou na demolição violenta e arbitrária de 02 casas e despejo de famílias no dia 04 de julho de 2019, amplamente divulgada na mídia, não permitiu alternativa a não ser o ingresso com medida judicial para a garantia da casa caiçara de Edmilson, morador tradicional do local, e de Karina, sua companheira, atualmente gestante.
Na ação, proposta no dia 10 de julho de 2019, a Defensoria Pública e o Advogado da comunidade sustentam que a Fundação Florestal agiu de forma ilegal ao promover ato de força e destruição contra famílias tradicionais caiçaras sem ordem judicial e com base apenas em Parecer da Procuradoria do Estado, impedindo análise do conflito pelo Poder Judiciário e impossibilitando o exercício de qualquer tipo de defesa, até mesmo no âmbito administrativo. Os autores Edmilson e Karina pedem, em caráter liminar, que o Poder Judiciário impeça que a Fundação Florestal e o estado de São Paulo executem autotutela administrativa para demolir a casa caiçara e despejar a família tradicional e, como requerimento final e de mérito, que se reconheça a tradicionalidade caiçara e o direito à concessão de uso para fins de moradia tradicional caiçara na Comunidade do Rio Verde, onde vivem.
O Juiz da 1ª Vara Judicial da Comarca de Iguape, Excelentíssimo Guilherme Henrique dos Santos Martins, recebeu a ação e deferiu o pedido de liminar, no dia 12 de julho de 2019, para que a Fundação Florestal e o estado de São Paulo “se abstenham de executar ordem administrativa de demolição da casa e de desocupação dos autores”, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 e de responsabilização por crime de desobediência em caso de descumprimento.
O magistrado entendeu que há farta documentação, com destaque para o Laudo Antropológico elaborado por renomados Antropólogos, que atesta a tradicionalidade caiçara de Edmilson, descendente direto da linhagem Prado. Além disso, adiantou que o caiçara preenche todos os requisitos previstos na Lei Estadual que cria o Mosaico de Unidades de Conservação da Jureia-Itatins a fim de receber Termo de Permissão de Uso para moradia na Comunidade do Rio Verde, da qual faz parte e com a qual mantém vínculo, desempenhando atividades tradicionais sustentáveis.
Tecendo considerações sobre desenvolvimento sustentável, o Juiz reconhece que as comunidades caiçaras da Jureia foram “decisivas para a integridade dos ecossistemas existentes” e que são portadoras de patrimônio cultural, como o Fandango, que somente pode ser tutelado se o território tradicional caiçara for assegurado, como determina a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, norma com força supralegal e aplicável às Comunidades Tradicionais Caiçaras, da qual Edmilson é legítimo membro.
Prossegue o magistrado censurando o exercício da autotutela administrativa, porque se está diante de “altamente complexas relações jurídicas decorrentes da sobreposição de áreas decorrente da instalação de unidades de conservação (e a correspondente necessidade de proteção do meio ambiente) e o direito social de moradia de comunidades tradicionais de que trata a hipótese dos autos.”
Argumenta que, mesmo se não fossem moradores tradicionais, os autores teriam direito à defesa em devido processo legal judicial. Esclarece que a Fundação e o estado de São Paulo não poderiam “simplesmente ignorar a necessidade de tutela jurisdicional a pretexto de raciocínio jurídico altamente controverso quanto à ‘autotutela possessória administrativa’, ainda que sob o legítimo manto de proteção ao meio ambiente, já aplicada na hipótese, ao que parece, de forma açodada e arbitrária em relação aos dois núcleos familiares já afetados (…) e que implica em risco concreto e atual à esfera jurídica dos requerentes, colocando-os flagrante estado de sujeição, mormente na hipótese, tratando-se de local remoto e desprovido de meios de comunicação.”
Com firmeza, o Juiz condena a postura arbitrária da Fundação Florestal, em razão “do aparente cumprimento abrupto e sorrateiro da demolição aos 04/07/2019, na manhã seguinte ao encerramento das tratativas consensuais descritas na exordial, que envolveram a comunidade tradicional e duas instituições de incontestável representatividade (DPE-SP e MPF)”, sem assegurar providências “elementares em qualquer tratativa envolvendo reintegrações de posse e desocupação/demolição de bens imóveis de incidência bastante corriqueira na unidade de conservação em apreço , inclusive para evitar eventual responsabilização estatal por eventuais danos materiais/morais decorrentes das condutas de seus agentes.”
Após 30 anos de luta pelo território tradicional caiçara na Jureia, cujo resultado perverso significou a expulsão integral ou parcial de diversas comunidades na região, esta decisão judicial pioneira reconhece a violência histórica e o racismo ambiental cometidos em nome da preservação da natureza intocada. As famílias caiçaras da Comunidade do Rio Verde permanecem mobilizadas e juntas às outras comunidades tradicionais, que também vivenciam há tempos diversas formas de violência no território onde vivem, e sentem-se fortalecidas para continuar unidas na busca de um horizonte de justiça para todas.