Sâmia Bomfim apresenta PL para conter “epidemia neonazista”
Projeto é uma resposta para enfrentar o aumento das manifestações extremistas e a propagação do discurso de ódio, defende o doutor em Direito Constitucional, Paulo Iotti, autor da minuta.
7 abr 2023, 21:01 Tempo de leitura: 8 minutos, 1 segundoTexto originalmente publicado pela Fórum, em 07/04/2023
Está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 145/2023, que pretende criminalizar toda forma de manifestação ou apologia nazista e neonazista. A legislação atual, considerada tímida pela nova proposta, proíbe apenas o uso da suástica para fins de divulgação da ideologia que é, essencialmente, racista e violenta. No Brasil pós-Bolsonaro, a banalização do discurso de ódio pela extrema-direita, o crescimento significativo de facções supremacistas e o recrutamento de jovens pela internet têm alarmado a sociedade, o que exige regras mais amplas e detalhadas para a coibição e punição desses crimes.
O PL foi protocolado por Sâmia Bomfim (PSOL-SP) após iniciativa do doutor em Direito Constitucional, Paulo Iotti, que apresentou a minuta ao mandato da deputada. “A ideia é efetivamente tornar crime qualquer apologia ao nazismo ou ao neonazismo. Por exemplo, enaltecer a imagem de Hitler não é crime atualmente, pela letra da lei, e isso é absurdo”, comenta o jurista, que também é professor universitário e presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS).
De acordo com o texto, o Legislativo passa a reconhecer o nazismo e as variantes neonazistas como ideologias “ontologicamente racistas, cuja manifestação promove a injúria e discursos de ódio em geral”, que visam atacar a dignidade e a honra de suas vítimas por meio da segregação racial, violência e intolerância. Dessa forma, configura-se como crime praticar, induzir ou incitar qualquer ato que implique “referência não-crítica” ou manifestações abertamente favoráveis ao regime que exterminou, ao menos, 11 milhões de pessoas no que é considerado o maior genocídio do século 20.
A tipificação inclui, para além da já citada cruz suástica (ou gamada), a reprodução de imagens dos líderes, saudações ou qualquer simbologia usada por grupos do passado e contemporâneos. Também estarão passíveis de pena: a propagação de materiais escritos, em áudio ou vídeo que façam apologia; defender a supremacia branca ou de outros grupos raciais majoritários contra pessoas negras, indígenas, migrantes, imigrantes ou integrantes de outros grupos minoritários; e negar a existência do holocausto ou culpabilizar o povo judeu e demais vítimas pelas perseguições sofridas durante o regime nazista.
Segundo o advogado, o aumento das manifestações neonazistas registrado nos últimos anos merece uma resposta enfática do Congresso para o devido enfrentamento. “As pessoas em geral acreditam que qualquer apologia ao nazismo constitui crime hoje, o que infelizmente não é verdade quando lemos o que a lei penal diz hoje sobre o tema. Por isso, a aprovação do projeto é indispensável para que esse consenso social não-nazista sobre o caráter criminoso dos discursos nazistas seja respeitado”.
Epidemia de neonazismo
Em janeiro de 2022, o programa Fantástico denunciou que grupos neonazistas armados começaram a se espalhar pelo Brasil. A reportagem trouxe dados da Comissão de Direitos Humanos da ONU que alertava para a falta de leis objetivas contra a intolerância como um dos fatores que facilitavam o avanço dessas facções no país. Àquela altura, havia cerca de 530 células extremistas no país, ultrapassando um universo de 10 mil integrantes.
No mesmo ano, em outubro, a Piauí publicou o dossiê “Anais do autoritarismo”, que mostrava como o crescimento do antissemitismo e a existência de uma “epidemia de neonazismo” estavam diretamente ligados à ascensão do bolsonarismo ao poder. A revista se baseou no estudo do Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil, listando diversas ocorrências do ex-governo que serviram como “salvo-conduto” para ataques a judeus e outras minorias.
Entre elas: o slogan “Brasil acima de tudo”, inspirado na mesma frase da campanha de Hitler “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo); os constantes acenos de funcionários do Executivo e apoiadores de Bolsonaro ao movimento “White Power”; o encontro do presidente com a deputada alemã Beatrix von Storch, neta do último chanceler do Terceiro Reich e filiada ao patido extremista AfD; e o fatídico episódio em que o ex-secretário de Cultura, Roberto Alvim, recriou em vídeo o discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, para anunciar políticas da pasta.
No último domingo (02), o jornalístico dominical da TV Globo voltou a abordar o tema. Desta vez, reportando uma investigação da Polícia Civil de Santa Catarina que descobriu a existência de uma filial brasileira das mais violentas organizações internacionais de neonazistas, fundada há quatro décadas nos Estados Unidos e com forte atuação em Portugal, Alemanha e outros países da Europa. Com a missão de pregar o ódio contra negros, judeus e LGBTQIA+, o grupo supremacista responde por uma série de crimes, incluindo assassinatos, e possui um sistema elaborado para o recrutamento de adolescentes.
Juventude na mira dos neonazis
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou nesta quinta (06) a instauração de um inquérito pela Polícia Federal (PF) sobre a atuação interestadual de organismos neonazistas. A medida foi anunciada após o ataque a uma creche em Blumenau (SC), onde um homem matou e feriu crianças, e o atentado que ocorreu numa escola da Vila Sônia, Zona Oeste de São Paulo, no qual uma professora foi morta por um aluno de 13 anos.
O massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), que chocou o país logo no início do governo Bolsonaro, completou quatro anos no mês passado. O crime resultou na morte de sete pessoas e os autores, ex-alunos da instituição de ensino, se suicidaram após a tragédia. Segundo as investigações, os praticantes do crime eram usuários ativos em fóruns da internet onde predominam os discursos de ódio misógino, supremacismo branco, bullying e nazismo.
Um relatório com diagnóstico desse tipo de violência nas escolas e possíveis soluções foi elaborado na transição do governo Lula, intitulado “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”. O documento aponta que, desde a primeira década dos anos 2000, ocorreram 16 ataques no país, com 35 vítimas fatais e 72 feridos. Quatro desses atentados foram no segundo semestre de 2022.
A participação de jovens em crimes de cunho nazista também está prevista no PL 145/2023. É considerado agravante quando “houver a utilização de crianças ou adolescentes para difusão de conteúdo nazista ou neonazista, ou quando comprovado o dolo direto ou eventual ou a culpa de pais, mães ou responsáveis em referida utilização”. Quando o delito for praticado por pessoas com menos de 18 anos, serão aplicadas medidas em consonância com Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o que prevê o artigo 227 da Constituição Federal.
Discurso de ódio não é liberdade de expressão
Mais de 74 mil denúncias de crimes envolvendo discurso de ódio pela internet foram encaminhadas no ano passado para a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da Safernet, organização de defesa dos direitos humanos em ambiente virtual. Esse foi o maior número já recebido desde 2017 e representou um aumento de 67,7% em relação a 2021. O levantamento foi divulgado no dia 07 de fevereiro.
A difusão do nazismo e neonazismos pela web é outro ponto que o PL 145/2023 encara. As penas deverão ser aumentadas até pela metade quando for constatada a veiculação de conteúdo criminoso “pela rede mundial de computadores em caráter de apologia ou defesa de referida ideologia, ainda que por compartilhamento, sendo sujeita à pena o responsável pela divulgação”.
Na justificação, o texto da proposta ressalta a necessidade do debate político superar o senso comum de que seria ineficiente proibir a propagação dos discursos de ódio em razão da velocidade e das proporções gigantescas que a disseminação se dá no ambiente virtual. “A internet e as redes sociais não são ‘terras sem lei’ e a elas, portanto, se aplica o ordenamento jurídico”, diz um trecho. Também é destacada a resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de 20 de outubro de 2022, que estabeleceu a retirada imediata de conteúdo ilícito sob pena de multa diária e outras punições, estendendo a mesma decisão para futuros casos semelhantes.
“Não há liberdade de expressão para difundir discursos de ódio, como corretamente entendem o STF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Discursos nazistas e neonazistas são discursos de ódio por definição, pois pregam a segregação e inferiorização de quem não consideram integrantes de uma ‘raça pura’, algo que nem existe mesmo biologicamente, como o Projeto Genoma provou há muito tempo. Mas é isso o que defendem e isso não é liberdade de expressão”, completa Iotti.
Além da pena de reclusão inafiançável já prevista na Lei do Racismo, outra inovação do projeto está na possibilidade simultânea de condenação sob pagamento de multa por reparação social. De acordo com o PL, o Ministério Público, a Defensoria Pública e entidades que defendem os direitos humanos estarão aptas ao recurso de indenização por dano moral coletivo, sem que esse veredito se converta na substituição ou redução da sentença de prisão.